Hoje eu estarei compartilhando com vocês dois enxertos do maior tratado
militar ocidental de todos os tempos: o Epitoma
Rei Militari, escrito por Flávio Vegécio.
As partes que eu estarei compartilhando por aqui, correspondem ao
acampamento. Em muitos vídeos de sobrevivencialistas aqui no Brasil, vemos por
exemplo pessoas sugerindo que se cave uma trincheira ao redor do acampamento ou
do abrigo secundário (cuja sigla em inglês é “b.o.l”), porém nada mais é falado
e ninguém no Brasil se aprofunda nesses temas.
Hoje eu irei fornecer na íntegra esses dois enxertos, retirados do Livro
I e do Livro III da obra de Vegécio e que falam sobre acampamentos. Vocês irão
notar que muitos preparadores e sobrevivencialistas, de maneira direta ou indireta,
se basearam nos escritos abaixo.
“ACAMPAMENTOS ENTRINCHEIRADOS
Os recrutas devem ser instruídos na maneira de entrincheirar
acampamentos, não havendo disciplina tão necessária e útil como esta. Pois
em um acampamento bem escolhido e entrincheirado, as tropas dia e noite
permanecem seguras em seus trabalhos, mesmo à vista do inimigo. Parece se
assemelhar a uma cidade fortificada que eles podem construir para sua segurança
onde quiserem. Mas esta arte valiosa agora está totalmente perdida, pois
há muito tempo nenhum de nossos acampamentos foi fortificado com trincheiras ou
paliçadas. Por causa dessa negligência, nossas forças foram frequentemente
surpreendidas dia e noite pela cavalaria inimiga e sofreram perdas muito
severas. A importância deste costume resulta não só do perigo a que estão
perpetuamente expostas as tropas que acampam sem tais precauções, mas da
situação penosa de um exército que, após receber um revés em campo,
encontra-se sem recuo e consequentemente à mercê do inimigo. Um
acampamento, especialmente na vizinhança de um inimigo, deve ser escolhido com
muito cuidado. Sua situação deve ser forte por natureza, e deve haver
abundância de madeira, forragem e água. Se o exército deve continuar nele
por um tempo considerável, deve-se ter atenção à salubridade do local. O
acampamento não deve estar abaixo de terrenos mais elevados de onde possa ser atacado
ou incomodado pelo inimigo, nem o local deve estar sujeito a inundações que
exponham o exército a grande perigo. As dimensões dos acampamentos devem
ser determinadas pelo número de tropas e quantidade de bagagem, para que um
grande exército tenha espaço suficiente e um pequeno não seja obrigado a se
estender além de seu terreno apropriado. A forma dos acampamentos deve ser
determinada pelo local do país, de acordo com o qual devem ser: quadrados,
triangulares ou ovais. O Portão Pretoriano deve ficar de frente para o
leste ou para o inimigo. Em um acampamento temporário, deve ficar de
frente para o lado o qual o exército deve marchar. Dentro deste portão são
armadas as tendas das primeiras centúrias ou coortes, e os dragões e outras
insígnias plantadas.
O portão Decumano fica diretamente oposto ao Pretoriano na parte
de trás do acampamento, e por ele os soldados são conduzidos ao local designado
para punição ou execução.
Existem dois métodos de entrincheirar um acampamento. Quando
o perigo não é iminente, eles cavam uma pequena vala ao redor de todo o
circuito, com apenas nove pés de largura e sete de profundidade [2,7m x 2,1m]. Com
a terra retirada, eles fazem uma espécie de parede ou parapeito de três pés de
altura [1,5m] no lado interno da vala. Mas onde houver motivo para temer os
ataques do inimigo, o acampamento deve ser cercado por uma vala regular de doze
pés de largura e nove pés de profundidade [3,7m x 2,7m] perpendicular à
superfície do solo. Um parapeito é então levantado no lado próximo ao
acampamento, com a altura de quatro pés [1,2m], com barreiras e fascículos
devidamente cobertos e presos pela terra retirada da vala. A partir dessas
dimensões, a altura interior da trincheira será de treze pés [4m] e a largura
do fosso de doze [3,7m]. No topo do conjunto estão plantadas fortes
paliçadas que os soldados carregam constantemente consigo para esse
fim. Um número suficiente de pás, picaretas, cestas de vime e ferramentas
de todos os tipos deve ser fornecido para esses trabalhos.
Não há dificuldade em manter as fortificações de um acampamento
quando nenhum inimigo está à vista. Mas se o inimigo estiver próximo, toda
a cavalaria e metade da infantaria devem ser colocadas em ordem de batalha para
cobrir o resto das tropas que trabalham nas trincheiras e estar prontas para
receber o inimigo se ele se oferecer para atacar. As centúrias são
empregadas alternadamente no trabalho e são regularmente chamados ao descanso
por um pregoeiro até que o todo [da obra] seja concluído. É então
inspecionado e medido pelos centuriões, que punem os que foram indolentes ou
negligentes. Este é um ponto muito importante na disciplina dos jovens
soldados, que quando devidamente treinados para isso, poderão em uma emergência
fortificar seu acampamento com habilidade e agilidade.” Vegécio,
Epitoma Rei Militari – Livro I
“REGRAS
PARA ACAMPAR UM EXÉRCITO
Um exército em marcha não pode esperar
sempre encontrar cidades muradas como quartéis, e é muito imprudente e perigoso
acampar de maneira dispersa sem algum tipo de trincheira. É fácil
surpreender tropas enquanto se refrescam ou se dispersam nas diferentes
ocupações do serviço. A escuridão da noite, a necessidade de dormir e a
dispersão dos cavalos no pasto oferecem oportunidades de [ataque] surpresa. Uma
boa situação para um acampamento não é suficiente; devemos escolher o
melhor que puder ser encontrado para que, não tendo conseguido ocupar um posto
mais vantajoso, o inimigo se apodere dele em nosso detrimento.
Um exército não deve acampar no verão
perto de águas ruins ou longe das boas, nem no inverno em uma situação sem
abundância de forragem e madeira. O acampamento não deve estar sujeito a
inundações repentinas. As avenidas não devem ser muito íngremes e
estreitas para que, se atacadas, as tropas tenham dificuldade em
recuar; nem deve estar debaixo [de qualquer terreno] alto dos quais possa
ser incomodado pelas armas do inimigo. Após essas precauções, o
acampamento é formado quadrado, redondo, triangular ou oblongo, de acordo com a
natureza do terreno. Pois a forma de um acampamento não constitui sua resistência. Esses
acampamentos, no entanto, são considerados melhores quando o comprimento é um
terço maior que a profundidade. As dimensões devem ser calculadas com
exatidão pelos engenheiros, de modo que o tamanho do acampamento seja
proporcional ao número de tropas. Um acampamento muito confinado não
permitirá que as tropas realizem seus movimentos com liberdade, e um muito
extenso os divide demais. Existem três métodos de entrincheirar um
acampamento: a primeira é para o caso em que o exército está em marcha e
permanecerá no acampamento por apenas uma noite. Eles então erguem um leve
parapeito de terra e o plantam com uma fileira de paliçadas ou estrepes de
madeira. Os gramados são cortados com instrumentos de ferro. Se a
terra é fortemente mantida unida pelas raízes da grama, elas são cortadas na
forma de um tijolo de um pé e meio de altura [45cm], um pé de largura [30cm] e
um pé e meio de comprimento [45cm]; se a terra estiver tão solta que a relva
não possa ser cortada dessa forma, eles abrem uma pequena trincheira ao redor
do acampamento, com um metro e meio de largura e um metro de
profundidade. A terra retirada da trincheira forma um parapeito por dentro
e isso protege o exército do perigo. Este é o segundo método.
Mas acampamentos permanentes, seja para
verão ou inverno, nas proximidades de um inimigo, são fortificados com maior
cuidado e regularidade. Depois que o terreno é demarcado pelos oficiais
apropriados, cada centúria recebe um certo número de pés para
entrincheirar. Eles então colocam seus escudos e bagagem em um círculo
sobre suas próprias coortes e, armados com suas espadas, abrem uma trincheira
de nove, onze ou treze pés de largura [2,7m, 3,3m e 3,9m]. Ou, se eles
estão sob grande pressão do inimigo, eles o ampliam para dezessete pés [5,1m] (sendo
regra geral observar números ímpares). Dentro dela, eles constroem uma
muralha com galhos de árvores bem amarrados com estacas, para que a terra possa
ser melhor sustentada. Sobre esta muralha erguem um parapeito com ameias
como nas fortificações de uma cidade. Os centuriões medem o trabalho com
varas de dez pés de comprimento [3m] e examinam se cada um completou
corretamente a proporção que lhe foi designada. Os tribunos também
inspecionam o trabalho e não devem deixar o local até que tudo esteja
concluído. E para que os operários não sejam subitamente interrompidos
pelo inimigo, toda a cavalaria e a parte da infantaria dispensada pelo
privilégio de seu posto de trabalhar, permanecem em ordem de batalha diante da
trincheira para estarem prontas para repelir qualquer assalto.
A primeira coisa a ser feita após o
entrincheiramento do acampamento é plantar as insígnias, mantidas pelos
soldados com a mais alta veneração e respeito, em seus devidos
lugares. Depois disso, o Pretório é preparado para o general e seus
tenentes, e as tendas armadas para os tribunos, que têm soldados especialmente
designados para esse serviço e para buscar água, madeira e forragem. Então
as legiões e auxiliares, cavalaria e infantaria, têm o terreno distribuído a
eles para armar suas tendas de acordo com a classificação dos vários
corpos. Quatro soldados de infantaria de cada centúria e quatro soldados
de cada tropa estão de guarda todas as noites. Como parecia impossível
para uma sentinela permanecer uma noite inteira em seu posto, os relógios foram
divididos pela ampulheta em quatro partes, para que cada homem pudesse ficar
apenas três horas. Todos os guardas começam [o seu turno] ao som da
trombeta e saem [do seu turno] ao som da corneta. Os tribunos escolhem
homens idôneos e confiáveis para visitar os diferentes postos e relatar a
eles tudo o que encontram de errado. Este é agora um cargo militar e as
pessoas nomeadas para ele são chamadas de oficiais das rondas.
A cavalaria fornece os grandes guardas
à noite e os postos avançados durante o dia. Eles são aliviados todas as
manhãs e tardes por causa do cansaço dos homens e cavalos. Incumbe
particularmente ao general providenciar a proteção dos pastos e dos comboios de
grãos e outras provisões, seja no acampamento ou na guarnição, e garantir
madeira, água e forragem contra as incursões do inimigo. Isso só pode ser
feito colocando destacamentos nas cidades ou castelos murados [que estão] nas
estradas por onde avançam os comboios. E se não se encontrarem antigas
fortificações, devem-se edificar pequenos fortes em situações próprias,
rodeados de grandes fossos, para a recepção de destacamentos de cavalaria e infantaria,
para que os comboios sejam eficazmente protegidos.” Vegécio, Epitoma Rei Militari
- Livro III
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